Perto do meu trabalho tem um outro cara que é bem parecido comigo. Coincidentemente nossos horários também são bem parecidos. E nosso trajeto também. As vezes esbarro com ele no ônibus na ida, mas quase sempre cruzamos na volta e passamos a hora do almoço quase todo dia no mesmo lugar. Nunca nos falamos, nem sequer uma palavra, mas acredito que nós sentimo-nos conhecidos nessa nossa relação de amizade que estamos criando há pouco mais de um mês.
Nesse tempo em que venho observando seu comportamento, percebi claramente a mudança que ocorreu no seu semblante. No começo, quando o via na hora do almoço, ele parecia um pouco entendiado assim que chegava, mas bastava começar a mexer no celular que ele logo abria um sorriso e passava todo o resto do tempo focado apenas no celular, focado ao ponto de nem notar minha presença, mesmo quando estava lá sentado ao lado dele. Quando encontrava com ele na volta era a mesma coisa! Estava sempre ouvindo alguma música e eu tenho certeza que ele repetia diversas vezes a mesma. Ele costumava cochilar na volta, com o celular na mão.. Acordava toda hora e olhava pra tela do aparelho, nem sempre se dava ao trabalho de responder, só as vezes. Posso apostar que ele sempre respondia quando era a mesma pessoa.
E então, depois disso, percebi que quando encontrava com ele de manhã no ônibus, ele já não mexia tanto no celular, ele até dormia... No horário do almoço ele também já não mexia tanto no celular quanto antes... Ele ainda, de vez em quando, mexia no celular um pouco mais empolgado, sorria até... Mas aí, em seguida já não estava mais com a mesma empolgação, ou estava até mexendo no celular mas com certeza vendo outras coisas e não aquilo que lhe fazia feliz.
Ontem encontrei com ele no horário do almoço. Ele parecia distante. Sentado olhando pro nada... Mas ele começou a ler um caderno que estava na sua mão ele começa a escrever e desiste. Fecha o caderno e vai embora. Ontem encontrei com ele na volta pra casa de novo... E de longe pude perceber que ele tomou uma decisão mas não tinha coragem de ir adiante... Ele respirou fundo. Bloqueou o aparelho e até a hora que ele desceu não o vi mais mexendo no aparelho. Nem estava ouvindo música. Nem estava feliz.
Hoje de manhã quando estava saindo de casa, a primeira coisa que pensei quando entrei no ônibus foi se encontraria com ele, estava curioso pra saber se algo tinha mudado. E então ele entrou, um pouco alheio a tudo. Vagou um lugar bem na sua frente mas ele preferiu ficar em pé. Ele estava ouvindo alguma música que gostava. E ficou ali, meio curvado olhando pela janela até o fim da viagem. Descemos no mesmo ponto. Enquanto atravessávamos a rua ele me olhou e cumprimentou cordialmente, apenas com um aceno de cabeça, como quem diz: "Olá! Sei que anda me observando!".
Na hora do almoço o observo de longe. Ele não mexeu no celular. Ele não falou com ninguém. Chegou a deitar no banco e ficou olhando pra cima. Ele olhava pro celular para ver a hora e também alguma coisa coisa. Posso apostar que ele estava esperando alguma coisa. Já nos últimos minutos do almoço, ele mexe no celular. Guarda no bolso e segue em frente. E hoje, pela primeira vez fiquei intencionalmente esperando que ele saísse. E ele demorou. Quando finalmente o vi de longe, percebi que ele estava diferente.. Seu caminhar estava diferente. Parou perto de mim na fila, entramos no ônibus e sentamos um ao lado do outro. Ele mexeu no celular. E leu três ou quatro vezes a mesma coisa. Ele respirou fundo duas vezes. Escreveu alguma coisa. Leu outra coisa. Olhou pela janela e percebi que as lentes do seu óculos embaçaram. Isso acontecer quando a temperatura do corpo muda bruscamente, sei porque também uso óculos. Ele tira os óculos e guarda na mochila. Olha pra fora o tempo todo. Não consigo ver seu rosto mas ele respira como se estivesse tentando se acalmar. Descemos no ponto final e vamos pra fila do outro ônibus. Normalmente costumo entrar na fila para que consiga voltar sentado, mas hoje resolvi entrar no próximo ônibus que estava saindo para que eu pudesse acompanhá-lo. Entro e fico em pé do lado dele. Ele percebe que estou ali e novamente, como fez de manhã, acena com a cabeça. Ele começa a ouvir uma música que faz com que ele tenha uma respiração tão profunda que quase chego a perguntar se está tudo bem. Quando olho pra ele, vejo uma lágrima pesada caindo do seu olho direito. Depois outra. E outra. Ele repete a música. E tudo vai se repetindo constantemente. Tenho vontade de interferir, de mandar ele tirar aquela música, mas não faço nada. Vejo que ele morde o lábio e cerra os punhos para tentar segurar aquilo que estava teimando em cair do seus olhos. Ele olha para mim e eu quase dou abraço nele. Mas não faço nada. Apenas o vigio e aceno com a cabeça. Ele sabe que eu sei o que ele sente. Ele também sabe que isso é uma coisa que ele precisa resolver sozinho. Algumas vezes sua respiração fica mais ofegante, e ele certa mais os punhos. Eu tenho certeza que ele queria muito o abraço de algum amigo agora. Não queria que ninguém falasse nada, mas queria sentir alguém por perto. Acho que ele pensou em pegar o carro assim que chegar em casa e dirigir até o outro lado da cidade apenas para receber um abraço. Pensou no colo da mãe quando chegasse em casa e descartou essa ideia em seguida. Pensou em todas as pessoas possíveis que pudessem apenas lhe abraçar. E desistiu. Ele me olha e eu sinto que sabe que sei o que ele está sentindo. Penso em convida-lo pra descer e tomar umas 6 doses de tequila. Mas sei que ele quer chegar em casa. Ele quer tomar um banho e dormir. Acho que ele esta com dor de cabeça. Ele parece um pouco bêbado mesmo sem ter bebido nem um ml de álcool. Ele respira fundo três vezes. Desce do ônibus e acena pra mim. Tenho certeza que nunca mais encontrarei esse meu amigo na minha rotina. Ele vai se perder no tempo e sumir em meio ao caos. Talvez eu o encontre perdido por aí, provavelmente nos cumprimentaremos cordialmente, lembraremos da dolorida volta pra casa que compartilhamos onde eu era o único amigo que ele podia contar, e seguiremos em frente, em caminhos opostos.
Até breve (?)
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